Sunday, August 10, 2008

Filme 4/52: Il filo pericoloso delle cose [in Eros]

Il filo pericoloso delle cose [in Eros - 2004]
D: Michelangelo Antonioni
R: Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra
F: Marco Pontecorvo
http://www.imdb.com/title/tt0343663/


A partir de uma idéia de Antonioni e de Stéphane Tchal Gadjieff, o projeto Eros foi iniciado com o propósito de unir diretores de gerações diferentes para discutir a visão do amor. Os diretores escolhidos foram o próprio Antonioni, Steven Soderbergh (Traffic, 11 Homens e 1 destino, etc) e Wong Kar Wai (Amor à Flor da Pele, Um beijo roubado, etc.).

Li alguns comentários do filme como um todo, e todos são unânimes em dizer que a parte do Kar Wai é perfeita, a de Sonderbergh divide opiniões e a maioria acha "Il filo pericolloso delle cose" do grande Antonioni ruim.

Não posso opinar sobre os outros, pois desde a primeira vez que vi a parte de Antonioni fiquei absolutamente fascinado e não consegui avançar para os outros. Vi e revi estes aprox. 28 minutos diversas vezes e a cada vez eles me diziam mais. Ou seja, para mim, estes críticos não entenderam nada de "Il filo...".

Sempre que vejo filmes do Antonioni isto acontece. Ao final do filme entende-se mais ou menos a história, mais ou menos o propósito do filme, mas fica-se com a sensação de que há várias camadas por baixo da história superficial projetada na tela. É como se tivéssemos acesso à mente do diretor por algumas horas, como se estivéssemos vendo seu consciente e sub consciente ao mesmo tempo. Vê-se, ou melhor, sente-se o que ele está dizendo e pensando, mas, é preciso certo tempo para que todas estas imagens, cenas e símbolos aflorem e entendamos o que eles querem dizer.

O roteiro seria simples se não nos atentarmos aos detalhes. O título do filme, "Il filo pericoloso delle cose", ou "O fio perigoso das coisas", parece ser um alerta para que isto. Christopher e Cloe, um casal com a relação já bastante desgastada sai para almoçar. Lá avistam uma garota, com quem Christopher se envolverá e a quem mais tarde Cloe encontrará. Nada demais. A fotografia é linda e bem cuidada, planos longos, poucas falas, e por isto mesmo, recheada de linguagem simbólica, mas numa análise superficial, um filme apenas médio. O filme é recheado de cenas de nudez e aparentemente isto é a grande controvérsia que faz as pessoas acharem tudo gratuíto e despropositado. Mas a meu ver não é bem assim.

Cloe e Linda são contradições no sentido dialético. Linda é a não-Cloe. Cloe, que passa a maior parte do filme seminua ou com uma blusa totalmente transparente se torna o amor no plano inconsciente, enaquanto que Linda representa mais o amor mundano-carnal. O idealismo projetado por Cloe fica claro na cena próxima do final, quando Christopher liga de Paris e os dois percebem que têm saudades. Fica também clara a referência simbólica quando se aproximam do lago onde há ninfas, mas especificamente crinéias, comumente vistas com simbolos das musas, e se perguntam "por que não haviamos vindo aqui antes?". É como se nunca tivessem se dado conta que seu amor se dá na universo da emoção, não da razão.

Aliás, esta dialética entre o Pathos (emoções) e do Ethos (razão) aparece em outros simbolos ao longo do filme. Quando Cloe e Christopher saem de carro, eles primeiro vão para a esquerda (lado da emoção), param, voltam, e partem para a direita (lado da razão). Quando Linda chega à cavalo, ela monta um cavalo branco e encarna o mito de Perseu, herói mitológico que em sua jornada se confronta com as várias facetas do feminino. Ela entra no restaurante e pede maçãs (fruto do pecado original) e em seguida Cloe vira uma taça e a rola no chão, representando, na mitologia do Tarô, a traição, na trajetória do naipe de copas, ligado ao elemento água, os sentimentos.

Quando Christopher vai atrás de linda em sua torre, ela traz consigo um bastão, simbolo do naipe de paus, ligado ao elemento fogo e representa o espirito aventureiro e a imaginação criativa que produzem os fatos além de nosso entendimento. Ao entrar na torre, arcano de grandes transformações, Linda avisa, "espero que não se importe com o caos". "que tipo de caos?", "o caos total". É a paixão que revolverá toda a vida e os sentimentos.

A cena de sexo entre eles é cheia de mistério, aventuas e desafios. Quando ele sobe para o quarto de Linda, ela já nua na cama, pergunta, "Que acontece se eu me deitar?", "te digo meu nome", responde ela, quase num tom de esfinge, de "decifra-me ou devoro-te".

O filme segue todo assim, até que chega a cena final do filme, uma das mais belas que já vi, e que sintetiza toda a visão de Antonioni sobre o amor.

Linda, novamente com um bastão (paus) dança nua, à beiramar de forma livre, sensual, divertida, aventureira. Brinca com o bastão, risca o chão. Depois deita-se ao sol e adormece.
A seguir é a vez de Cloe. De forma muito mais sensível, harmônica, ela também tira a roupa e inicia um balé de movimentos bem coreografados, precisos e belos. Nos remete a Afrodite, deusa da beleza que nasce no mar. Cloe segue dançando até que avista Linda adormecida. Ela se aproxima e, numa cena de plasticidade inigualável, sua sombra acorda a Linda. Para Antonioni o amor e o erotismo se acordam e se provocam e, em sua interação dialética de contradições, amadurecem os sentimentos. Convenhamos, se formos capaz de transpor esta interação entre o Pathos e o Ethos dentro de nós, esta é a história das relações humanas.

Interessante também mencionar que o mito de Eros conta a história do filho de Afrodite, o deus do amor que, enviado por sua mãe para matar Psiquê pelos ciúmes que aquela sentia da beleza da mortal, se apaixona por esta e assim nos conta a história do amadurecimento dos sentimentos.
***
É claro que não é preciso ser especialista em mitologia grega para se tocar por um filme. Jung já provou que a mitologia e os arcanos estão presentes no inconsciente coletivo dos humanos desde os primórdios de nossas civilizações.
Para ver um filme de Antonioni basta ver com os olhos, ouvidos e deixar com que sua intuição faça o resto.