Friday, December 08, 2006

Santa Ceia



"Padre, posso levar uma palavra com o senhor?" - era Marta, madrinha da pequena Cris que subia ao altar tendo feito o sinal da cruz ao subir os dois degraus que elevavam o sacerdote do restante dos fiéis.

Padre Chico nunca gostara desta diferença entre sacerdotes e fiéis, por isto pregava à tradição islâmica, no mesmo nível do povo, muitas vezes ajoelhando-se junto aos fiéis enquanto oravam, com sua Meca sendo o altar da igreja. Só voltava a subir os degraus ao final de todos os ritos, ajudar o sacristão a guardar os objetos de ritual.

Alguns dos fiéis mais conservadores estranharam e até desgostavam destas práticas, mas como eram justamente os mais religiosos, ainda que contrariados, nunca deixavam de ir aos sermões. Marta fazia parte deste grupo e destoava de seus colegas de devoção por sua pouca idade. Nas missas era das mais apaixonadas, "Ele está no meio de nós" bradava com fervor, olhos fechados e sorriso de fé. Seus episódios favoridos eram os das ressurreições, fosse a de Lázaro, fosse a de Jesus, coincidência ou não, onde a participação de sua homônima biblíca era mais importante.

Marta gostava de pensar na ressureição como sendo o impossível rompendo o inevitável, era a comprovação máxima do poder divino para nós, filhos. Estava certa que nestes momentos os céus se abriram, como grandes sorrisos do criador, e a vontade de Deus foi cumprida em seu mais alto grau. "Ele está no meio de nós, sim, com toda a certeza Ele está", repetia ela para si mesma.

"Claro minha filha", respondeu Padre Chico enquanto guardava as óstias remanescentes e enxugava a taça em que bebera o vinho.
"Eu queria falar com o senhor sobre estes quadros" e apontou em movimento curto para as paredes da nave principal da igreja.
"São lindos não?", disse o Padre em tom tranquilo, mas já imaginando que aquilo para Marta seria uma provocação. "Adoro como ele faz questão de pintar Cristo em cada quadro com uma cor, nos lembrando que sua vida deve ser exemplo para todos nós, tenhamos os cabelos loiros, negros ou até verdes". Ele terminou sua frase com um sorriso ao mesmo tempo que seu gesto e olhos azuis finalizavam a volta na igreja e apontavam para os castanhos de Marta, na esperança que isto desarmasse as armas com que ela o abordara.

A expressão de Marta era ainda assim contrariada, "Com todo o respeito padre, mas acho que deveríamos ter algo mais sóbrio, mais respeitoso à casa de Deus".

"Irmã, não me entenda mal, mas os quadros desta igreja não foram pintados para você. Eles são para os bebês que estamos batizando".

Marta ainda relutou, mas acabou acatando com respeito os argumentos do padre, inclusive convidando-o para o jantar que faria em sua casa naquela semana.

Padre Chico como sempre divertiu a todos com seu bom humor, seu carisma natural e quase não deixou transparecer sua preocupação as primeira pressões que sua polêmica presença nesta tradicional paróquia causava. O Padre sabia que Marta era em grande parte responsável por estes problemas, mas insistia em tratá-la sem diferenças. Sentia, apesar disto, grande carinho por Marta e sua irmã Maria, mãe de Cristiana, sentia que muita bondade emanava destas famílias e adorava fazer parte de suas histórias.

Monday, December 04, 2006

Autoarqueologia

Férias, ócio, tempo para leitura, tempo de arqueologia nos meus ármários.
Sabe como é, o tempo vai passando, a correria, rotina, e sufoco do dia-a-dia vão fazendo com que coisas absolutamente essenciais, como arrumar o ármário, vão ficando, er.. no fundo da gaveta.
Juro que o "absolutamente essenciais" não é ironia, tampouco é sinal de algum transtorno obcessivo compulsivo de minha parte. Mas é claro que o absolutamente essencial não é o organizar o armário em si, mas sim revisitar a própria história.

Revirar caixas de sapato com carteirinhas da escola me traz aquela sensação que a Chevrolet usa para tentar vender Vectra, aquela sensação de que tudo que vivi me fez ser quem eu sou. A carta da primeira namorada, que depois de um ano te escreve uma carta pedindo desculpas, ou as carteirinhas da quarta-série, ou ainda alguma carta dos meus pais, ou algum jornalzinho da escola que seu nome saiu e por isso o guardou.

Pois bem, no meio desta papelada, encontrei um "boletim", informativo do Anglo, lugar onde fiz o cursinho semi-intensivo por seis meses. Só tenho esta única edição, uma folha de sulfite frente-e-verso de 17 de outubro de 1994. Nesta edição especial, é publicado um texto póstumo do professor Betão, professor que até onde me lembro não me deu aulas, mas vai saber, por algum motivo, li o texto e algo me fez guardá-lo na mesma caixa que a charge que os alunos do meu pai fizeram para ele quando eu nasci.

No texto o professor Betão conta que sua lavadeira, a Ritinha certa vez encontrou um desses bilhetinhos com perguntas que os alunos mandam, e sem grandes cerimônias, pergunta a ele o que é a Emenda Platt. Ele conta que, ainda atordoado, sem entender muito bem de onde a cearense semi-analfabeta que trabalha com ele há tanto tempo tirou esta pergunta, ele segue falando da emenda na constituição cubana que legitimava a intervenção ianque na ilha pré-revolução.

E, em seu texto segue imaginando que iria seguir discorrendo sobre a revolução de Fidel, e o como o isto a transformaria, e como ela levaria estas idéias de volta a sua terra natal, e como isto no nordeste miserável, explorado, cronicamente inviável causaria levantes, e como esta revolução traria ao nordeste extinção do analfabetismo a exemplo da ilha-território-livre, e de como a mortalidade infantil se reduziria aos melhores níveis do mundo.. Segue em seus devaneios até que ritinha quebra novamente o silêncio, "Professor, quando é que vai consertar a máquina de lavar?"

E Ritinha, representante característica dos brasileiros como si só, assim como um professor que convive em paz consigo mesmo com uma lavadeira semi-analfabeta em casa, deixou para lá. Seguiu com seu cotidiano e passou a salada.

Fico pensando o que diabos, do alto dos meus 18 anos, estava passando na minha cabeça. Será que só fiquei comovido por ser um texto póstumo? Será que eu sabia o que é a Emenda Platt? A verdade é que o texto, 12 anos depois de ter sido guardado, às vesperas de minha viagem a Cuba, veio no momento exato.

Certo está Drexler, que canta ao fundo "La vida es mas compleja de lo que parece".