Thursday, November 13, 2008

Janusz Kaminski

Uma das coisas mais legais de se estudar a técnica do cinema é começar a ter prazer na sala escura mesmo nos filmes mais tediosos ou até naqueles mais clichês-água-com-açúcar-marmelada.
Não é que vc fique mais ou menos inteligente, mais ou menos sensível ou mais ou menos bobo, é só que você passa a admirar coisas que nunca tinha notado antes.

Isto no meu caso quer dizer conseguir assistir mais Spielberg e não só "Escafandros e Borboletas". Vejam só que engraçado, apesar do meu poste anterior ter mencionado que o diretor de fotografia do "Escafandro..." era um tal Janusz Kaminski, foi preciso um pouco mais de pesquisa para entender que o cara é o Fotógrafo preferido do Spielberg. Vejam só algns filmes na galeria do rapaz: A lista de Schindler (1993), Jurassic Park (1997), O Resgate do Soldado Ryan (1998), O Terminal (2004), O Escafandro e a Borboleta (2007). (lista completa)

Resumindo, não é porque o roteiro é ruim, ou porque a atuação deste ou daquele é ruim, ou até porque o diretor é o mestre do clichê enlatado, que o filme não tenha algum elemento interessante, ou muito bem executado.

Porque também vâmo combiná, existe alguma outra forma de se ver, por exemplo, "O Terminal" que não seja observando a fotografia de um dos maiores fotógrafos de hollywood? Na verdade existe, mas aí vc vai ter que aguentar o mala do Tom Hanks construindo uma pia no aeroporto de nova iorque.

Monday, October 13, 2008

Filme 5/52: O Escafandro e a Borboleta

Le Scaphandre et le papillon
D:Julian Schnabel
F:Janusz Kaminski
R:Ronald Harwood baseado no livro de Jean-Dominique Bauby
http://www.imdb.com/title/tt0401383/


Filmes são diferentes de livros. Não há como negar. Acho que mesmo cineastas enquanto espectadores reconhecem isto. Mas há muito poucos cineastas que, enquanto cineastas, conseguem entender esta diferença e fazer bons filmes a partir de bons livros.

Julian Schnabel é um destes poucos, e "Le Scaphandre et le papillon" é uma destas boas versões. O filme é baseado na autobiografia de Jean-Dominique Bauby, editor da revista Elle francesa que após um repentino derrame se encontra preso dentro de si mesmo, 100% consciente mas incapaz de mover qualquer músculo a não ser sua pálpebra esquerda.

Os especialistas chamam de "sindrome de locked-in", traduzida por Jean-Dominique como a esperiência de se estar preso e imóvel em um escafandro que flutua pela vida, descrição perfeita do que vivemos nós, os espectadores ao assistir ao filme.

O diretor Julian Schnabel segue o caminho ditado pelo livro (que mais tarde descobrimos ter sido ditado pela pálpebra do protagonista) ao contar o filme em 1a pessoa e acerta em cheio quando decide não colocar Jean-Do como um pobre diabo, mas sim prender a platéia dentro de seu corpo e assim nos colocar na completa e desesperadora imobilidade da síndrome, só quebrada pelas piscadas e ótimas tiradas de humor negro do próprio autor-paciente.

Num primeiro momento o filme é apenas incômodo mas, assim como seu narrador, vamos nos acostumando, entre uma angústia e outra, entre uma tirada cômica e mais alguma descoberta da vida pré-acidente do escafandrista. Após muitos pensamentos que só nós escutamos, uma fonoaudióloga desenvolve um método que permite que o paciente vá soletrando palavras piscando quando a letra é dita por ela. Para nós espectadores que vamos piscando letra a letra para as enfermeiras não há nada mais sufocante.

O filme é angustiante, a situação de Jean-Do dramática, mas o que torna o filme forte são as relações humanas que ele reavalia. Se você se encontrasse preso em seu corpo com um último fio de comunicação com o exterior, qual seria seu último texto ao mundo? Escreveria cartas a seu pai? Escreveria um livro de auto-ajuda?

Para mim o filme é muito bom primeiro pelo fato de se saber filme, segundo pelo fato de nos tocar pela identificação com os defeitos e angústias, e não por qualquer tipo de caridade cristã, e por fim, por ser um filme simples porém belo, por ser bem executado sem precisar dar muitas piruetas.

Pode ser ato-reflexo, quase óbvio-ululante, mas é impossível não perguntar, não estaremos todos nos afogando dentro de nossos escafandros?

Sunday, August 10, 2008

Filme 4/52: Il filo pericoloso delle cose [in Eros]

Il filo pericoloso delle cose [in Eros - 2004]
D: Michelangelo Antonioni
R: Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra
F: Marco Pontecorvo
http://www.imdb.com/title/tt0343663/


A partir de uma idéia de Antonioni e de Stéphane Tchal Gadjieff, o projeto Eros foi iniciado com o propósito de unir diretores de gerações diferentes para discutir a visão do amor. Os diretores escolhidos foram o próprio Antonioni, Steven Soderbergh (Traffic, 11 Homens e 1 destino, etc) e Wong Kar Wai (Amor à Flor da Pele, Um beijo roubado, etc.).

Li alguns comentários do filme como um todo, e todos são unânimes em dizer que a parte do Kar Wai é perfeita, a de Sonderbergh divide opiniões e a maioria acha "Il filo pericolloso delle cose" do grande Antonioni ruim.

Não posso opinar sobre os outros, pois desde a primeira vez que vi a parte de Antonioni fiquei absolutamente fascinado e não consegui avançar para os outros. Vi e revi estes aprox. 28 minutos diversas vezes e a cada vez eles me diziam mais. Ou seja, para mim, estes críticos não entenderam nada de "Il filo...".

Sempre que vejo filmes do Antonioni isto acontece. Ao final do filme entende-se mais ou menos a história, mais ou menos o propósito do filme, mas fica-se com a sensação de que há várias camadas por baixo da história superficial projetada na tela. É como se tivéssemos acesso à mente do diretor por algumas horas, como se estivéssemos vendo seu consciente e sub consciente ao mesmo tempo. Vê-se, ou melhor, sente-se o que ele está dizendo e pensando, mas, é preciso certo tempo para que todas estas imagens, cenas e símbolos aflorem e entendamos o que eles querem dizer.

O roteiro seria simples se não nos atentarmos aos detalhes. O título do filme, "Il filo pericoloso delle cose", ou "O fio perigoso das coisas", parece ser um alerta para que isto. Christopher e Cloe, um casal com a relação já bastante desgastada sai para almoçar. Lá avistam uma garota, com quem Christopher se envolverá e a quem mais tarde Cloe encontrará. Nada demais. A fotografia é linda e bem cuidada, planos longos, poucas falas, e por isto mesmo, recheada de linguagem simbólica, mas numa análise superficial, um filme apenas médio. O filme é recheado de cenas de nudez e aparentemente isto é a grande controvérsia que faz as pessoas acharem tudo gratuíto e despropositado. Mas a meu ver não é bem assim.

Cloe e Linda são contradições no sentido dialético. Linda é a não-Cloe. Cloe, que passa a maior parte do filme seminua ou com uma blusa totalmente transparente se torna o amor no plano inconsciente, enaquanto que Linda representa mais o amor mundano-carnal. O idealismo projetado por Cloe fica claro na cena próxima do final, quando Christopher liga de Paris e os dois percebem que têm saudades. Fica também clara a referência simbólica quando se aproximam do lago onde há ninfas, mas especificamente crinéias, comumente vistas com simbolos das musas, e se perguntam "por que não haviamos vindo aqui antes?". É como se nunca tivessem se dado conta que seu amor se dá na universo da emoção, não da razão.

Aliás, esta dialética entre o Pathos (emoções) e do Ethos (razão) aparece em outros simbolos ao longo do filme. Quando Cloe e Christopher saem de carro, eles primeiro vão para a esquerda (lado da emoção), param, voltam, e partem para a direita (lado da razão). Quando Linda chega à cavalo, ela monta um cavalo branco e encarna o mito de Perseu, herói mitológico que em sua jornada se confronta com as várias facetas do feminino. Ela entra no restaurante e pede maçãs (fruto do pecado original) e em seguida Cloe vira uma taça e a rola no chão, representando, na mitologia do Tarô, a traição, na trajetória do naipe de copas, ligado ao elemento água, os sentimentos.

Quando Christopher vai atrás de linda em sua torre, ela traz consigo um bastão, simbolo do naipe de paus, ligado ao elemento fogo e representa o espirito aventureiro e a imaginação criativa que produzem os fatos além de nosso entendimento. Ao entrar na torre, arcano de grandes transformações, Linda avisa, "espero que não se importe com o caos". "que tipo de caos?", "o caos total". É a paixão que revolverá toda a vida e os sentimentos.

A cena de sexo entre eles é cheia de mistério, aventuas e desafios. Quando ele sobe para o quarto de Linda, ela já nua na cama, pergunta, "Que acontece se eu me deitar?", "te digo meu nome", responde ela, quase num tom de esfinge, de "decifra-me ou devoro-te".

O filme segue todo assim, até que chega a cena final do filme, uma das mais belas que já vi, e que sintetiza toda a visão de Antonioni sobre o amor.

Linda, novamente com um bastão (paus) dança nua, à beiramar de forma livre, sensual, divertida, aventureira. Brinca com o bastão, risca o chão. Depois deita-se ao sol e adormece.
A seguir é a vez de Cloe. De forma muito mais sensível, harmônica, ela também tira a roupa e inicia um balé de movimentos bem coreografados, precisos e belos. Nos remete a Afrodite, deusa da beleza que nasce no mar. Cloe segue dançando até que avista Linda adormecida. Ela se aproxima e, numa cena de plasticidade inigualável, sua sombra acorda a Linda. Para Antonioni o amor e o erotismo se acordam e se provocam e, em sua interação dialética de contradições, amadurecem os sentimentos. Convenhamos, se formos capaz de transpor esta interação entre o Pathos e o Ethos dentro de nós, esta é a história das relações humanas.

Interessante também mencionar que o mito de Eros conta a história do filho de Afrodite, o deus do amor que, enviado por sua mãe para matar Psiquê pelos ciúmes que aquela sentia da beleza da mortal, se apaixona por esta e assim nos conta a história do amadurecimento dos sentimentos.
***
É claro que não é preciso ser especialista em mitologia grega para se tocar por um filme. Jung já provou que a mitologia e os arcanos estão presentes no inconsciente coletivo dos humanos desde os primórdios de nossas civilizações.
Para ver um filme de Antonioni basta ver com os olhos, ouvidos e deixar com que sua intuição faça o resto.

Wednesday, July 23, 2008

Filme 3/52: Batman - O Cavaleiro das Trevas

Batman - O Cavaleiro das Trevas
D: Christopher Nolan
F: Wally Pfister
R: Jonathan Nolan e Christopher Nolan
http://www.imdb.com/title/tt0468569/

Adoro quando acontece isto com filmes. Um mega-blockbuster do qual eu estava completamente alheio da existência aparece em minha frente e, sem quase nenhuma informação eu entro na sala de cinema e dou de cara com uma obra absolutamente fantástica. A última vez que isto aconteceu (faz tempo..) foi com o Matrix.

"O Cavaleiro das Trevas" é um daqueles filmes que conseguem unir um roteiro incrível, atuações absolutamente geniais com cenas de ação competentes. É pra se divertir por 3 horas e ficar digerindo por 3 dias.

A fotografia do filme é interessantíssima, mais do que escura ela é sombria. Li em algum lugar que foram escurecidas as bordas do filme para dar este efeito. A arte do filme, locações, figurinos, objetos de cena é toda muito bem cuidada, som, fotografia, tudo com a qualidade que os bons filmes de hollywood costumam oferecer, mais a vida inteligente que o cinemão não costuma cultivar.

Como em qualquer Batman, o vilão rouba a cena. Mas desta vez é diferente. O Coringa de Heath Ledger é definitivo, parece saltar diretamente dos quadrinhos e sua personalidade caótica e psicopática representa tudo que o coringa tem que representar, a destruição de todas as instituições que fragilmente sustentam a sociedade gothamcityense.
O Coringa é o bobo da corte, ele está ali para desmistificar e ridicularizar qualquer valor grandioso ou universal e para tornar toda e qualquer verdade em algo relativo, momentâneo e dialético. A verdade e a justiça, criações humanas não são entidades absolutas nunca, elas são culturais e históricas.

O mundo inatista herdado de "Batman Begins" não entende isto de cara, e tanto o Homem-Morcego quanto os bandidos comuns lidam com ele como se ele fosse motivado pelos óbvios dinheiro e poder e vão um a um se perdendo e caindo em uma armadilha após a outra. Enquanto isto, vemos o Coringa queimar uma pilha enorme de dinheiro, vemos ele quebrar com a suposta compaixão humana da democracia quando a população vota matar os presidiários e os presidiários descartam matar a população. Pouco a pouco vemos as outras personagens irem fugindo de seu script e irem relativizando suas verdades e valores. Batman invade a privacidade de todos os moradores de Gotham, "contamina" a cena do crime sobrepassando o CSI, tortura o coringa para extrair informações e confirma a profecia do coringa quando fala "nós somos a mesma pessoa, você me complementa".

A fala do Coringa é ainda mais significativa pois ele diz isto enquanto está pendurado por uma corda amarrada no pé, referência direta à carta do Enforcado no Tarô, que segundo a Wikipedia tem o seguinte significado: "Serenely dangling upside-down, the Hanged Man has let go of worldly attachments. He has sacrificed a desire for control over his circumstances in order to gain an understanding of, and communion with, creative energies far greater than his individual self. In letting go, the hero gains a profound perspective accessible only to someone free from everyday conceptual, dualistic reality." De forma genial, a cena começa com o Coringa de cabeça para baixo, e a câmera vira, criando uma carta do baralho virtual e colocando ele, apesar de pendurado, na mesma posição que seu inimigo-complemento, o homem-morcego.

NO Cavaleiro das Trevas, Batman deixa de ser o arquétipo do herói para enfrentar o mundo, romper com seus paradigmas e dar uma dimensão mutio mais ampla ao mundo fora da dicotomia (ironicamente típica de hollywood) do bem e do mal. É claro que ao final do filme ele é apenas um herói confuso e confundido com um vilão pela cidade que ele se sacrifica para salvar. Ele é "o herói que Gotham merece".

Esta revisão é mais clara e presente no Batman, mas quase todas as personagens rompem com todas as suas verdades em nome de alguma circunstância muito mais habilmente entendida pelo Vilão. Harvey Dent, o protótipo do herói institucionalizado, legitimado pelo sistema, vira o duas faces, Lucius, o inventor dos bat-apetrechos é cumplice da violação de privacidade da população pelo batman (só desta vez, nunca mais!), Alfred escolhe não mostrar a carta com as verdades a Bruce Waine e a queima, Gordon é forçado a mentir para o filho e assume a culpa que não tem para salvá-lo (e aí a única instituição não estilhaçada no filme, a família), até a policial da equipe de Gordon mente para a Sra Gordon com uma arma apontada na cabeça.

Enfim, este é um filme do Batman onde ninguém é totalmente bom, e nos torna cúmplices da corrupção de caráter a que as personagens vão sendo submetidas. São questionados os conceitos de razão, verdade, justiça e democracia numa obra onde o coringa é o mestre de cerimônias deste comboio de corda que se chama coração.

A tempo: a vida imita (complementa?) a arte, Heath foi encontrado morto em NY em circunstâncias estranhas, onde se cogita suicídio. Christian Bale, o Batman, foi preso em londres por agredir a mulher e filha. A verdade e a justiça são processos realmente culturais meus amigos...

Wednesday, July 16, 2008

Filme 2/52: La Hora de los hornos: Notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación

La Hora de los hornos: Notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación
Documentário, Argentina (1968)
D: Fernando E. Solanas e Octavio Getino
F: Juan Carlos Desanzo e Fernando E. Solanas
http://www.imdb.com/title/tt0063084/

* * *

Se assistir a "La Hora..." com suas quase 4 horas e meia já seria por si só um ato heróico, que se dirá de tê-lo assistido sem intervalos, com a cópia ruim e legendas todas erradas como foi no Festival Latino de São Paulo.

Mas independente destas condições desfavoráveis, o fato é que o filme é qualquer coisa genial, desde que se entenda a que ele se propõe. Não se trata de um cinema consumível, não se trata de entretenimento. Fernando Solanas e os participantes do "Tercer Cine" não estavam interessados em serem exibidos em festivais de arte por aí a fora, muito menos vir parar num Arteplex no século 21.

O Tercer Cine quer a Revolução, foi um movimento que propunha um terceiro cinema para o terceiro mundo. Desprezava a cultura como consumo de hollywood, mas também percebia que havia qualquer coisa de errada e individualista demais com o cinema de autor europeu. Para Solanas e seus companheiros, a América Latina tem que se descolonizar, e ele, em seu papel de cineasta tem a obrigação de inventar este cinema. "O inventamos, o erramos" é a citação de Simón Rodrigues em "Argentina Latente", outro filme de Solanas na mostra. E ele inventa muito.

Solanas sabe que todo ato artístico é um ato político e não lhe resta opçãoa não ser inventar um cinema libertário e descolonizante. Mas não espere um filme somente áspero, há muitos momentos de pura beleza estética. A primeira cena é um exemplo. O recorte de cenas da polícia com manifestantes, intercaladas com planos pretos e a trilha sonora de uma percussão crescente são absolutamente fantásticos. Os cortes são feitos um milésimo de segundo antes de estarem completas as cenas, e você se sente sendo sugado para a tela a cada segundo. Muito esperto. Funciona perfeitamente para iniciar o filme com a platéia a flor da pele e dar o tom da linguagem.

Nesta linha, ele experimenta, se arrisca, erra as vezes, mas acerta muito. Para começar nos riscos que ele aceitou, o filme tem quatro horas e meia. Está dividido em três partes e se propõe a ser mais que uma obra de arte, mais que um cinema de denúncia. O filme faz um balanço da atuação da esquerda latino-americana, seus erros e acertos. Ele sabe quem é o público e não perde o foco: "La Hora.." é para trabalhadores, intelectuais, estudantes e militantes em geral engajados nos movimentos sociais que lutam, de uma forma ou outra pela liberação latino-americana pela causa socialista.

O povo, os trabalhadores, os oprimidos são os atores principais, humanizados por planos fechados e longos, expressões sérias olhando diretamente para a câmera. Fotos do Sebastião Salgado em movimento. Nota-se muita semelhança com o contemporâneo e primo próximo Cinema Novo, movimentos de câmera ousados para a época, a parcialidade consciente. Falando em Cinema Novo, um filme de Leon Hirszman (Maioria Absoluta, 1964) é citado com algumas cenas e é chocante notar como a miséria latino-americana é uniforme. A primeira parte do documentário, "Neocolonialismo y violencia" termina com o rosto morto de Che Guevara capturado na Bolívia te olhand por alguns minutos. Estático, sem som. É impressionante como Che parece vivo nesta cena-fotografia. O público fica minutos olhando cada detalhe de seu rosto, o brilho em seus olhos, o leve e misterioso sorriso como que zombando de seus algozes.

Mas para Solanas a denúncia não basta, afinal, está-se inventando um terceiro cinema, descolonizante, e não basta mostrar que há um problema, trata-se de exigir a ação das pessoas, a arte tem que mobilizar. E assim, no melhor estilo brechtiano, o espectador é tirado de sua passividade. Por diversas vezes o filme simplesmente para e um letreiro "ESPAÇO ABERTO PARA A DISCUSSÃO" te faz arregalar os olhos e pensar o que você proporia se as luzes fossem acesas. E elas deveriam ter sido acesas.

A maior parte do documentário são imagens de arquivo e imagens feitas da população, normalmente sem som algum, com o discurso incisivo de Solanas em off. Há também muitos depoimentos, e é notável como ele consegue equilibrar bem todos estes elementos, isto com os poucos momentos que há trilha sonora e planos pretos.

Não se trata de um filme, trata-se de material para reflexão e planejamento da esquerda de 68, pós-Peron. Trata-se de não dar respostas mas de fazer perguntas e exigir que o diálogo com o espectador seja explícito. Trata-se de reconhecer acertos, analisar erros, entender como se movimenta o inimigo (a burguesia e a oligarquia) e principalmente de chamar a responsabilidade à luta.

A cópia do festival era bem escura e maltratada, o que não permite saber onde estão as falhas de fotografia, onde estão problemas com a cópia. De maneira geral o filme acerta. Certamente há depoimentos, diálogos, cenas demais para se passar a mensagem, ainda mais para uma obra que se propõe a ser um diálogo. Independente disto, várias das idéias de Solanas são interessantíssimas e, surpreendentemente para um filme politizado de 68, frescas e até hoje inovadoras.

Wednesday, July 09, 2008

Filme 1/52: Tropa de Elite

Tecnicamente, Tropa de Elite é um bom filme (me recuso a distinguir entre os nacionais e os não, se é bom é, se não, não é, sem amenizantes ou pré-conceitos). O roteiro e atuação convencem, as locações e montagem são inteligentes e prendem a atenção de quem assiste. A fotografia e som, ainda que sem nada muito inovador, é bem executada e faz muito bem seu papel (o que para muitos filmes já seria uma vitória), câmera quase todo o tempo na mão e nervosa, como um bom filme de ação, som dublado, muita luz natural, perseguições e tiros, cenas de violência convincentes (com algumas exceções) jogo com profundidade de campo e uso dinâmica do olho. Tudo como manda a estética hollywood dos anos 00.

O filme começa deixando você tenso pois vamos todos subir o morro juntos com o BOPE para acabar com um tiroteio na porta de um baile funk. A tensão é interrompida com uma volta de 6 meses no tempo para saber como se chegou até este ponto. Muito esperto! Deixando de cara o espectador sem ar e envolvido em toda a ação! Mais tarde quando se chegar a esta mesma cena, ela terá um novo significado, já se entenderá os motivos e a empolgação com a cena será ainda maior. Coisas de roteiro bom, boa execução, montagem inteligente. Resumidamente, Tropa de Elite é, tecnicamente, um filme de ação para ninguém botar defeito.

E realmente, se o filme se passasse em algum subúrbio de Los Angeles, duvido que alguém se importasse tanto, ou até que participasse de qualquer festival.

Mas o fato é que o filme é no Rio de Janeiro. E pior, "segundo depoimentos, baseado em fatos reais". Se a "verdade" em um documentário já sempre é enviesada, imagine numa ficção "baseada em fatos reais". Ora, é claro que o que se vê ali é uma opinião. Uma visão clara de um diretor com um público-alvo claramente e espertamente escolhido: as classes média e média-alta.

O filme toma partido e traz intencionalmente a platéia para o lado do BOPE: o Capitão Nascimento é um sempre durão, mas agora vai ter um filho e por isso titubeia (humanização pela ligação com a família - e viva a moral burguesa!). A polícia é corrupta e falida, a favela dominada pelo tráfico. Só Nascimento, no melhor estilo Rambo ou seriado policial americano, pode resolver os problemas ao fazer justiça com as próprias mãos. Até o super-cliché do policial querendo se aposentar vale para trazer o público domesticado com enlatados ianques pro seu lado.

Ora, a polícia não tem culpa, mas também não resolve, a favela, generalização do traficante, dominada e submissa, é terra de ninguém. A comunidade ou relações humanas praticamente não existem; ficam assim restritas à visão da classe média: favelados = bandidos, com a personificação de um líder (baiano), que apesar de encarnação do mal, teme o FBI, digo o BOPE.

Então, se a miséria e as drogas isentam a favela, a corrupção no alto escalão e a falta de estrutura isentam a polícia e o BOPE é o único salvador da pátria, quem é o culpado? A classe média! O playboyzinho estudante universitário que fuma seu baseado! Esta tese pode parecer completamente ridícula, mas ecoa perfeitamente na matriz de preconceitos que é a classe média "formadora" de opinião (aliás, são os únicos que têm acesso às salas de cinema).

Capitão Nascimento (ironia com toda a morte que dissemina) é a encarnação do BOPE, instituição da polícia carioca que prende, espanca, tortura, mata, invade casas de civís, agride mulheres, homens e crianças sem distinção, e ainda assim é heróica. Todos os seus atos são desculpados, afinal ela esta ali para proteger a classe média da favela. O filme faz isto de forma muito clara, humaniza a relação de nascimento com seu filho e esposa (até o momento em que desiste desta humanidade pela "causa" do BOPE) enquanto a relação do traficante com a esposa e filho praticamente não aparece, ou aparece como algo frio.

E não há escolha a não ser o BOPE, não adianta você, classe média, querer humanizar a favela (guardadas as restrições da ação da ONG), quando forem ameaçados, eles te matarão sem dó com um tiro na cabeça ou queimados vivos.

Quando Nascimento vai atrás de baiano para vingar a morte do soldado da tropa de elite, ele invade a casa e tortura um popular, ameaça empalá-lo com um cabo de vassoura, mas este ato é desculpado junto à audiência "Eu sabia que isto estava errado, mas eles mataram um soldado do BOPE". Pronto, está tudo permitido e ninguém mais pensa se é certo ou errado. O tiro na cara de baiano é feito de um jeito que o público fica quase desejando que isto acontecesse.

Por isto Tropa de Elite é um filme perigosíssimo, pois é ao mesmo tempo extremamente convincente e bem executado e absolutamente irresponsável. Reduz o problema social da violência do RJ, idolatra um grupo da polícia com conduta violenta, ilegal, imoral e fascista e acaba por legitimar, numa linguagem que o público entende, uma estratégia absolutamente equivocada de se garantir a segurança.

Alguém poderá dizer que é exagero, "é só um filme!", mas temos que lembrar que a arte é uma forma de se transformar a relação que temos com o mundo, relação esta que em última estância se chama "realidade".

Prova deste perigo são as transformações (ou não) em nossa sociedade pós-filme: o termo "Tropa de Elite" virou sinônimo de trabalho em equipe, eficiência e liderança. Já há livros de negócios "como montar sua tropa de elite", o BOPE dá palestras para executivos, "pede pra sair" e outros viraram expressões correntes. Por outro lado, a polícia do RJ continua sendo a que mais mata no mundo (desde 2003). Hoje 20% dos homicídios no RJ são executados pela polícia.

Filmes com o Tropa de Elite são passos largos para seguirmos legitimando estes resquícios (ainda grandes) de ditadura, violência e fascismo em nossa polícia.

Friday, July 04, 2008

Dedicatória da Mari

Um livro são pedaços de papel. Idéias, não.
Idéias não se estragam ou ficam velhas.

Andam por aí desgovernadas e nunca ficam amareladas.
Pelos espaços e tempos andam nuas, desavergonhadas.
Não se prendem, nem mesmo se encadernadas.

Idéias sempre são eternas,
não se mata nem se as pode queimar.
Às vezes dormem, mas sem nunca se deitar.

Idéias não morrem; são sóis, só nascem.
Enterradas, a salvo dos caracóis, se mexem.
E surgem, e brotam, para o bem ou para o mal,
num dia qualquer ou num feriado nacional.

**
Parabéns marildinha!

Monday, January 14, 2008

L entalu ta e terna

"Amar é sede depois de se ter bem bebido"
--Guimarães Rosa

Lenta e eterna luta sempre será aquela que se trava contra si mesmo, aquela que te trava.
"Hoje eu acordei com sono, sem vontade de acordar". Como pode quase o êxtase inesgotável, o nirvana coletivo ser tão incômodo e desconfortável?

No começo deste ano eu fui ao mar. As pessoas sempre despertarão os sentimentos mais fortes, ainda que um bom ambiente os potencialize à infinitésima potência. No mar havia o sol de fim de tarde, a temperatura perfeita e a transparência cristalina. Senti o mar me puxar, presságio de uma onda enorme. "mergulhe nela, é muito bom sentir ela passar por seus pés". Fiz, me surpreendi, ela estava linda, mas não era ela, era eu. A luta que te trava é eterna, a contra o que te arrasta também. Sempre furei as ondas sem senti-las. Agora quero aprender a flutuar para onde ela me leve, sentir-me leve.

Lentamente, seguia lutando contra a maré que me puxava, presságio da onda que passaria. A onda era desconfortável, a garota não era tão legal, mas a incansável sede, que vinha de outra parte, de outras pessoas, sempre as pessoas, não se saciava com a água do mar.

A experiência do mar é fantástica, mas só faz sentido para quem sabe flutuar entre as ondas, e furá-las sempre que necessário, só que agora sentindo-as acariciar-lhe os pés. A luta é lenta, eterna e para si mesmo insaciável.