Friday, December 08, 2006

Santa Ceia



"Padre, posso levar uma palavra com o senhor?" - era Marta, madrinha da pequena Cris que subia ao altar tendo feito o sinal da cruz ao subir os dois degraus que elevavam o sacerdote do restante dos fiéis.

Padre Chico nunca gostara desta diferença entre sacerdotes e fiéis, por isto pregava à tradição islâmica, no mesmo nível do povo, muitas vezes ajoelhando-se junto aos fiéis enquanto oravam, com sua Meca sendo o altar da igreja. Só voltava a subir os degraus ao final de todos os ritos, ajudar o sacristão a guardar os objetos de ritual.

Alguns dos fiéis mais conservadores estranharam e até desgostavam destas práticas, mas como eram justamente os mais religiosos, ainda que contrariados, nunca deixavam de ir aos sermões. Marta fazia parte deste grupo e destoava de seus colegas de devoção por sua pouca idade. Nas missas era das mais apaixonadas, "Ele está no meio de nós" bradava com fervor, olhos fechados e sorriso de fé. Seus episódios favoridos eram os das ressurreições, fosse a de Lázaro, fosse a de Jesus, coincidência ou não, onde a participação de sua homônima biblíca era mais importante.

Marta gostava de pensar na ressureição como sendo o impossível rompendo o inevitável, era a comprovação máxima do poder divino para nós, filhos. Estava certa que nestes momentos os céus se abriram, como grandes sorrisos do criador, e a vontade de Deus foi cumprida em seu mais alto grau. "Ele está no meio de nós, sim, com toda a certeza Ele está", repetia ela para si mesma.

"Claro minha filha", respondeu Padre Chico enquanto guardava as óstias remanescentes e enxugava a taça em que bebera o vinho.
"Eu queria falar com o senhor sobre estes quadros" e apontou em movimento curto para as paredes da nave principal da igreja.
"São lindos não?", disse o Padre em tom tranquilo, mas já imaginando que aquilo para Marta seria uma provocação. "Adoro como ele faz questão de pintar Cristo em cada quadro com uma cor, nos lembrando que sua vida deve ser exemplo para todos nós, tenhamos os cabelos loiros, negros ou até verdes". Ele terminou sua frase com um sorriso ao mesmo tempo que seu gesto e olhos azuis finalizavam a volta na igreja e apontavam para os castanhos de Marta, na esperança que isto desarmasse as armas com que ela o abordara.

A expressão de Marta era ainda assim contrariada, "Com todo o respeito padre, mas acho que deveríamos ter algo mais sóbrio, mais respeitoso à casa de Deus".

"Irmã, não me entenda mal, mas os quadros desta igreja não foram pintados para você. Eles são para os bebês que estamos batizando".

Marta ainda relutou, mas acabou acatando com respeito os argumentos do padre, inclusive convidando-o para o jantar que faria em sua casa naquela semana.

Padre Chico como sempre divertiu a todos com seu bom humor, seu carisma natural e quase não deixou transparecer sua preocupação as primeira pressões que sua polêmica presença nesta tradicional paróquia causava. O Padre sabia que Marta era em grande parte responsável por estes problemas, mas insistia em tratá-la sem diferenças. Sentia, apesar disto, grande carinho por Marta e sua irmã Maria, mãe de Cristiana, sentia que muita bondade emanava destas famílias e adorava fazer parte de suas histórias.

Monday, December 04, 2006

Autoarqueologia

Férias, ócio, tempo para leitura, tempo de arqueologia nos meus ármários.
Sabe como é, o tempo vai passando, a correria, rotina, e sufoco do dia-a-dia vão fazendo com que coisas absolutamente essenciais, como arrumar o ármário, vão ficando, er.. no fundo da gaveta.
Juro que o "absolutamente essenciais" não é ironia, tampouco é sinal de algum transtorno obcessivo compulsivo de minha parte. Mas é claro que o absolutamente essencial não é o organizar o armário em si, mas sim revisitar a própria história.

Revirar caixas de sapato com carteirinhas da escola me traz aquela sensação que a Chevrolet usa para tentar vender Vectra, aquela sensação de que tudo que vivi me fez ser quem eu sou. A carta da primeira namorada, que depois de um ano te escreve uma carta pedindo desculpas, ou as carteirinhas da quarta-série, ou ainda alguma carta dos meus pais, ou algum jornalzinho da escola que seu nome saiu e por isso o guardou.

Pois bem, no meio desta papelada, encontrei um "boletim", informativo do Anglo, lugar onde fiz o cursinho semi-intensivo por seis meses. Só tenho esta única edição, uma folha de sulfite frente-e-verso de 17 de outubro de 1994. Nesta edição especial, é publicado um texto póstumo do professor Betão, professor que até onde me lembro não me deu aulas, mas vai saber, por algum motivo, li o texto e algo me fez guardá-lo na mesma caixa que a charge que os alunos do meu pai fizeram para ele quando eu nasci.

No texto o professor Betão conta que sua lavadeira, a Ritinha certa vez encontrou um desses bilhetinhos com perguntas que os alunos mandam, e sem grandes cerimônias, pergunta a ele o que é a Emenda Platt. Ele conta que, ainda atordoado, sem entender muito bem de onde a cearense semi-analfabeta que trabalha com ele há tanto tempo tirou esta pergunta, ele segue falando da emenda na constituição cubana que legitimava a intervenção ianque na ilha pré-revolução.

E, em seu texto segue imaginando que iria seguir discorrendo sobre a revolução de Fidel, e o como o isto a transformaria, e como ela levaria estas idéias de volta a sua terra natal, e como isto no nordeste miserável, explorado, cronicamente inviável causaria levantes, e como esta revolução traria ao nordeste extinção do analfabetismo a exemplo da ilha-território-livre, e de como a mortalidade infantil se reduziria aos melhores níveis do mundo.. Segue em seus devaneios até que ritinha quebra novamente o silêncio, "Professor, quando é que vai consertar a máquina de lavar?"

E Ritinha, representante característica dos brasileiros como si só, assim como um professor que convive em paz consigo mesmo com uma lavadeira semi-analfabeta em casa, deixou para lá. Seguiu com seu cotidiano e passou a salada.

Fico pensando o que diabos, do alto dos meus 18 anos, estava passando na minha cabeça. Será que só fiquei comovido por ser um texto póstumo? Será que eu sabia o que é a Emenda Platt? A verdade é que o texto, 12 anos depois de ter sido guardado, às vesperas de minha viagem a Cuba, veio no momento exato.

Certo está Drexler, que canta ao fundo "La vida es mas compleja de lo que parece".

Friday, November 17, 2006

Não, não tem nada não

Ontem à 1 da manhã, começo a frase:
-Olá boa noite, o Diógenes, que morava aqui...
O porteiro com os olhos arregalados:
-Ele não mora mais aqui
-Sim, eu sei, ele me pediu que passasse aqui para pegar a correspondência
-Ele não mora mais aqui
-Eu sei, mas ele disse que vocês guardariam a correspondência
-Ah! deixa eu ver!
Pega uns envelopes do lado e olha com muita dificuldade um a um, procurando um nome estranho
-Você tem que ligar aqui durante o dia pro seu Carlos (acho que era esse o nome). Se tiver, tá com ele.

Fico em silêncio a olhar para o figura, e o cara, incomodadado com meu silêncio:
-Deixa eu ver nessas gavetas
Abre a segunda, revira a gaveta, a terceira, a quarta, a segunda de novo.
-É, não tem nada não, vc pode perguntar amanhã.

Penso que se não tem nada, para que perguntar no outro dia, mas tudo bem. Vou dormir.

Hoje, 8h20 da manhã, o outro porteiro:
-Bom dia
-Bom dia, o Diógenes disse que vcs guardariam as correspondencias e pediu que eu passasse aqui.
-Diógenes?
-É, ele morava no 803.
-Deixa eu ver
Revira os mesmos papéis em cima do balcão, abre a mesma segunda gaveta, revira, abre a terceira, a quarta, a segunda de novo.
-Não, não tem nada não

E por algum motivo da natureza, foi meu amigo sair do apartamento, e todo o planeta terra, inclusive as empresas de mala direta deixaram de tentar o convencer a assinar seus jornais, ou a pagar suas contas.

Ai, ai (*Suspiro*), vou ligar para o tal Carlos.

Friday, November 03, 2006

Machuca e a Omissão


Não sei se eu levei a coisa muito para o pessoal, mas o fato é que Machuca é um daqueles filmes que te faz pensar por muito tempo. Foi assim da primeira vez que o vi, na mostra de 2004, foi assim desta última vez.

O filme conta a história de um menino rico que estuda num colégio para ricos. Numa iniciativa do diretor da escola, um padre com idéias pouco ortodoxas, métodos rígidos e idéias libertárias, meninos moradores da favela se tornam colegas e passam a ter que dividir o mesmo espaço.

Seria apenas um filme sobre relações humanas se o pano de fundo para a história destes meninos não fosse a ascenção do comunista Salvador Allende, e o consequente golpe militar de Pinochet.

O roteiro do filme é muito bom, e é fácil reconhecer posturas políticas presentes em nosso dia-a-dia latinoamericano. É facil ver "crianças matando crianças inimigas" com suas posturas arrogantes reproduzindo a fala e pensamento de seus pais. É fácil ver o egoismo nazista das socialites que posam de humanistas. "Porque misturar maçãs e peras? Não somos melhores ou piores, somos diferentes, e não há porque se misturar coisas diferentes". Ou o comunista de linha escocesa, "Vamos para a Itália, o comunismo é o melhor para o Chile, mas não é o melhor para nós." O filme é tocante, independente de se você o vê com olhos políticos ou com olhos de novela das oito.

Mas no meu caso ele dói mais. O menino bem nascido que acaba por rejeitar sua classe, que não concorda com o que tem e simpatiza com o não ter.

É enchergar que a gente miúda só quer viver e ter uma chance de não ser culpada do que não é. É um filme que lembra que se omitir a escolher um lado é seguir a corrente e escolher o lado que te escolheu.

Escolhas são difíceis e exigem coragem. O camaleão é um réptil verde.

Friday, September 29, 2006

Cê tá Rock

Tinha lido e ouvido que o novo do Caetano "Cê" era pra ser "cd de rock clandestino".
Não chega a tanto, mas pelo menos o Leaozinho saiu da interminável fase banquinho-violão-orquestra-chororô.

O CD tem realmente uma sonoridade há muito não ouvida em suas músicas, e é muito bom! Aliás, o que eu mais gosto de Caetano é como ele consegue fazer músicas legais, mesmo que as letras, assim, lidas, pareçam meio bobas.

Por exemplo, uma das melhores músicas é "Rocks":
"Tatuou um ganesh na coxa
chegou com a boca roxa de botox
exigindo rocks
animais metais totais letais
eu não dei letra
tu é gênia, gata"

Ave Caê

Wednesday, September 27, 2006

4:01 AM Ócio improdutivo

Tudo bem que eu já estava acostumado a não ter mais tanto tempo livre para ler, escrever e coisas que pessoas que acreditam na vida-após-o-trabalho fazem; mas ficar até 4h30, 5h da manhã botando sistema para funcionar também já é demais...

Semana que vem a vida volta ao normal (assim espero).

Monday, September 18, 2006

Quero ser Tom Zé quando eu crescer.

Tom Zé é, como eu, homem devoto de mulher,
sofisticado devoto do que é simples.
Faz do cotidiano e do geo-político um pires
para do político e do geo-cotidiano fazer sua colher.

Operário da arte que é, jardina o som de Irará
Contra dor de bucho dilui ano, eno e onu
Contra-ataca junto a Lampião o FMI e o Carcará
já o caboclo do sertão, esse flui e vai pro trono.

E da dinamite na cabeça do século, pode acender o pavio
Porque tudo isso é made made made, made in brazil.

Saturday, September 16, 2006

Domingo de Ramos

A movimentação era grande naquela tarde na Igreja Coração Imaculado de Maria, popularmente conhecida de Igreja da Redentora, pelo nome do bairro de classe média-alta de São José do Rio Preto, interior paulista.

Era domingo, e junto com Cristiana, dezessete bebês seriam batizados. O número coincidia com os dezoito quadros da atípica via sacra que ilustravam as paredes da nave principal.
A igreja estava cheia, o domingo era de Ramos, e a data tradicionalmente atraía mais pessoas que a frequência normal à qual o Padre Francisco estava acostumado.

O fato se repetia em todas as dioceses, e os sacerdotes nunca admitiam em público, mas intimamente suspeitavam que esta atração se dava mais pelo lúdico de se carregar pequenos ramos de palmeira do que pela lembrança da entrada de Jesus em Jerusalém.

De uma forma ou de outra, para Padre Chico se tratava de um dia muito especial, tratava-se da
primeira data importante desde que a série de quadros da Paixão de Cristo de seu amigo Zé Antônio, caboclo que agora era pintor famoso, chegara à igreja da Redentora.

Ele respirou fundo e pegou com a mão esquerda o rosário sob o pequeno altar montado na sacristia, num movimento automático levantou a batina e ajoelhou-se em frente à imagem. Ficou ainda alguns instantes ajoelhado, mesmo após a oração, lembrando da fisionomia serena e do sorriso fácil (e risada difícil) do caboclo tímido chegando-se a ele após um sermão:
"A benção Padre"
"Deus te abençõe meu filho"
"Padre, gostei muito do sermão, mas tem uma coisa qui num sai da cabeça" - ele puxava o "r" como era o típico da região
"Diga meu filho"
"Sempre quando o siôr fala de Jesus e conta as história, é tudo tão bunito, que não dá pra intendê porque os santo aqui da igreja tão sofreno tanto."

Ao se levantar do pequeno altar o padre sorriu enquanto fazia o sinal da cruz e lembrava que concordou com Zé Antônio. Lembrou também que, continuando a prosa, marcaram um outro encontro para falar de arte sacra e conhecer os quadros que ele já começava a pintar.

"Esse caboclo é mesmo fantástico" pensou o padre ao levantar do geno-flexório, da mesma forma como já pensara naquele primeiro encontro.

O padre cruzou a porta da sacristia e seguiu o curto corredor que a ligava ao altar. A igreja estava realmente cheia.

"Bom dia irmãos, estamos aqui para celebrar um dia glorioso na vida de Jesus", iniciou o padre com um leve sotaque que insistia em não ir embora, mesmo depois de tantos anos da vinda de Francisco Janssen da Holanda para o Brasil. As pessoas sorriam carinhosamente na platéia.

O sermão foi especialmente iluminado, em parte pela felicidade que Padre Chico sentia, mas principalmente pelo grupo de crianças que percorriam a nave da igreja, ramo de palmeira em mãos, inventando sua própria via sacra.

***************
Conheça mais sobre o artista e arte naïf: José Antônio da Silva

Wednesday, September 06, 2006

Mama Africa


O fim de semana intenso com a Paulets não podia dar em nada diferente mesmo. A semana tem sido de cultura brasileira e africana.

A visita ao Museu da Língua Portuguesa (link) foi espetacular, na mostra fixa com a história das origens do português brasileiro. Línguas africanas, Tupi, Português, Inglês, tudo muito bem montado, fazendo com que uma exposição que poderia ser chatíssima se tornou interessantíssima! Da pra passar o dia todo por lá, decifrando a quantidade de informações e os quebra-cabeças propostos pelos curadores.

O CD de MP3 que ganhei dela tem também "Afro-Sambas" de Baden Powell e Vinícius, tem a musa cabo-verdiana Cesária Évora(link), o angolano Ruy Mingas.

Tem também o espetacular Milagrimas que mistura música sul-africana com Dorival Caymmi. E, como se não bastasse isso tudo, tem também Fela Kuti, o fundador do Afrobeat, revolucionário e ativista nigeriano que mandou o caixão da mãe para o exército quando a mataram e compôs a música "Coffin for Head of State".

Mama Africa, a minha mãe é mãe solteira!

Wednesday, August 23, 2006

Manifesto anti-lugar-comum

Segundo a Wikipédia, o clichê, ou o lugar-comum é "uma expressão idiomática que de tão utilizada e repetida, desgastou-se e perdeu o sentido ou se tornou algo que gera uma reação ruim em vez de dar o efeito esperado" (veja aqui)

Não sei se acontece com todo mundo, mas a mim realmente irrita bastante quando as pessoas assumem ar de sábios, estufam o peito e saem proferindo aquelas frases feitas, ou aquelas lendas-recebidas-por-e-mail-com-moral-da-estória. Seilá se é preconceito a Paulos Coelhos e auto-ajudas, mas a verdade é que eu não consigo disfarçar quando começam a contar a estória das estrelas-do-mar, do "para esta eu fiz a diferença" ou então soltam um "siga os sinais da vida", presente em algum(ns) Alquimista(s) por aí.

É claro que a primeira vez que ouvi a estorinha das estrelas, achei bonitinha, achei que tinha a ver, e que no final das contas a tolerância e solidariedade são relações um pra um e que salvar uma vida é sempre melhor que a passividade típica. Mas depois das 30a. vez que alguém vem com essa estorinha, ou coloca como moral-da-estória em alguma apresentação de RH, chego a ter ânsias.

E foi exatamente isto que aconteceu ao assistir o último filme do Bruce Willis, 16 Quadras. Alguém poderia argumentar que o Bruce Willis é o clichê personificado, mas temos que lembrar que o homem esteve no Pulp-Fiction..

É claro que pela própria característica do filme hollywoodiano feito para as massas, é muito difícil estar totalmetne isento de clichês, mas final de contas, o que é que este filme me acrescentou? O Bruce Willis com aquela barriguinha de travesseiro ridícula não conseguindo convencer ninguém? Ou será que foram os "sinais da vida" (olha eles aí de novo) ? A piadinha recorrente que é respondida no final? Ou será que é aquele personagem suuuper original do bandido-negro-que-fala-sem-parar? Faltou só a bomba desarmada no último segundo. Chamem-me de ranzinza se quiserem, mas deu vontade de processar o estúdio por estelionato.

Muito mais interessantes são as sacanagens com frases-lugares-comum, como a do meu amigo xineis que sempre solta "um dia é da caça, o outro da pesca" no momento apropriado, ou a frase do Teatro Mágico "Os opostos se distraem, os dispostos se atraem" (que já está quase virando lugar-comum).

Então aí vão algumas dicas de como fugir no dia-a-dia dos clichês e lugares-comuns:
1. Nunca reconte estorinhas-com-moral se vc as recebeu por e-mail
2. Nunca encaminhe os tais e-mails
3. Sacaneie estorinhas e ditados populares sempre que possível.
4. Estrague o final de qualquer estorinha-clichê contando o final antes da pessoa criar o clima
5. Evite filmes com o Bruce Willis, Julia Roberts, e afins; no caso dos nacionais, fuja dos globais
6. Auto-ajude-se e evite ler qualquer coisa de auto-ajuda.


PS. Será que criticar lugares-comuns e auto-ajuda é um lugar-comum?

Friday, August 18, 2006

Início para um conto

Lembrei de um texto que tinha escrito há bastante tempo. Chamei-o na época de "inicio para um conto", porque realmente eram só dois parágrafos. Decidi retomá-lo hoje, mas mantive o título :)


Já tinham se visto um ao outro, mas por um desses mistérios do comportamento humano, não se saudaram e, como se nenhum dos dois quisesse deixar o outro sem graça por não ter sido saudado, ocupavam-se ambos em tarefas inúteis, mas que tomassem algum tempo para que mais tarde, talvez mais casualmente, voltassem a cruzar os olhares, para então, fingindo supresa, oferecerem um curto sorriso ou um levantar de sombrancelhas, como são de costume os cumprimentos nas grandes cidades.

Ela sacou uma maçã da bolsa e, depois de uma mordida e um olhar aparentemente despreocupado pela a janela do ônibus, olhou em sua direção, inclinou levemente a cabeça e sorriu, enquanto ele fazia uma leve cortesia com a mão direita. Não havia motivo para que ele se sentasse a seu lado, nem para que conversassem, eles mal se conheciam. Ele apenas a conhecera quando, no dia anterior, saudou um amigo que a acompanhava. Sentou-se então um tanto longe, pensando no que fazer, enquanto arrumava a bolsa que trazia.

Ela não era exatamente bonita, seu nariz demasiado pontiagudo lhe dava um certo ar inteligente mas os lábios carnudos deixavam escapar alguma sensualidade de dentro dos longos trajes de meio outono.

Terminando de arrumar a bolsa, sentiu um frio na barriga, e o instinto era continuar ali onde estava e esperar uma situação mais apropriada, mas ele se levantou. Levantou-se e, apoiando-se nas barras do transporte, caminhou até ela, que, vendo aproximar-se seu conhecido, viu-se obrigada a virar-se e facilitar-lhe a passagem para que se sentasse a seu lado.

Foi uma sequência de movimentos comuns, notou que ele vinha, olhou-o surpresa, deixou escapar um leve sorriso, juntou as pernas e as levou para o corredor para que ele passase para o banco à sua direita. Ele passou sentou-se e assim ficaram bem próximos, mas ainda tentando superar a incrível distância que o desconhecimento produzia.

Mas como a velocidade de se superar distâncias é enorme quando há a vontade, e, como os físicos nos ensinaram, maior ainda é esta velocidade se dois corpos se movem na mesma direção no sentido adequado, acabaram por se despedir com um beijo no rosto quando ela teve de descer.

Alguém que visse todo o decorrer dessa cena possívelmente não teria a atenção tão presa quanto nós aqui temos, mas a aura que se viu ao redor de Marco Antônio e o interminável, apesar de sutil, sorriso que ficou em seus lábios, esses sim contagiaram a todos os que presenciaram a cena e eram sensíveis o suficiente.


imagem: Abstract Couple, de Frederico Cheque Nolha

Friday, August 11, 2006

Trintênio

Sempre considerei minha vida pacata, até um tanto careta. Nunca fui dado a loucuras, a não ser aquelas muito bem calculadas, o que por si só tira do ato o caráter de loucura. Por outro lado, sempre tive aquela inquietação interna, aquela chama, se preferir, que me faz buscar sair da mesmisse, que me faz buscar coisas novas, que me faz lutar pela mudança.

Não posso dizer que tenha sido responsável por grandes mudanças no mundo. Nunca liderei uma revolução (a não ser aquela vez no show de blues que invadimos o gargarejo à frente do pessoal do uísque e tábua de frios..), nunca me lancei em missões humanitárias (mas passei perto, quando eu e meu irmão íamos fazer uma campanha para expulsar o McDonald's de Ubatuba), e só fui à Africa num esquema meio turista de Safari.

A verdade é que chego aos Trinta sentindo-me orgulhoso e ansioso. Orgulhoso por tudo que amadureci, por tudo que acredito, por tudo que não acredito, por tudo que amo e tudo que não tolero, sinto-me feliz de ser quem sou e de cultivar os amigos e familia que tenho (e quanto orgulho tenho dos frutos que eles dão!). Sinto-me feliz por ter experimentado e encontrado meus limites.

Mas chegar aos trinta é saber que ainda há muito a ser feito, revoluções e se engajar, mudança e diferença no mundo a fazer.

O processo de se aproximar do trintênio é difícil, doloroso. É um período de muita incerteza, onde vc tem as vezes a sensação de que o caminho que se seguiu até agora está errado (e muitas vezes em muitos aspectos está mesmo..). É um período de algumas reviravoltas, relacionamentos que terminam, projetos abandonados, pessoas abandonadas. Mas, como aquela piada do louco que se martelava na cabeça, "quando acaba é tão bom!!!".

Então é isso aí, este é um post feliz, é um post para dizer que os 30 chegaram e as forças estão renovadas, o mundo que se prepare!

Thursday, August 03, 2006

Confianzas

se sienta a la mesa y escribe
«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice

y más: esos versos no han de servirle para
que peones maestros hacheros vivan mejor
coman mejor o él mismo coma viva mejor
ni para enamorar a una le servirán

no ganará plata con ellos
no entrará al cine gratis con ellos
no le darán ropa por ellos
no conseguirá tabaco o vino por ellos

ni papagayos ni bufandas ni barcos
ni toros ni paraguas conseguirá por ellos
si por ellos fuera a la lluvia lo mojará
no alcanzará perdón o gracia por ellos

«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice
se sienta a la mesa y escribe

--Poema de Juan Gelman musicado por Gotán Project


Comecei a escrever por desconfiança em psicólogos e pela difícil convivência comigo mesmo.

Poucas pessoas conseguem ficar tempo suficiente a sós para terem o tempo necessário para se conhecer. Aqueles que o fazem, normalmente pouco conscientes da importância deste processo, escapam dele através de pequenas loucuras cotidianas, nem sempre perceptíveis a olho nú.

Há aqueles que adotem bichos de estimação ou plantas, há também os que cultivem hábitos estranhos como assistir novela ou ler Paulo Coelho, já outros falam sozinhos ou tomam anti-depressivos. No meu caso, eu escrevo.

Já cri que livros e idéias derrubassem mais governos que armas, já cri em revoluções, já escrevi cartas de amor (ridículas). Hoje não creio em mais nada disso, hoje não escrevo por utilidade, escrevo porque é (im)preciso.