Monday, December 04, 2006

Autoarqueologia

Férias, ócio, tempo para leitura, tempo de arqueologia nos meus ármários.
Sabe como é, o tempo vai passando, a correria, rotina, e sufoco do dia-a-dia vão fazendo com que coisas absolutamente essenciais, como arrumar o ármário, vão ficando, er.. no fundo da gaveta.
Juro que o "absolutamente essenciais" não é ironia, tampouco é sinal de algum transtorno obcessivo compulsivo de minha parte. Mas é claro que o absolutamente essencial não é o organizar o armário em si, mas sim revisitar a própria história.

Revirar caixas de sapato com carteirinhas da escola me traz aquela sensação que a Chevrolet usa para tentar vender Vectra, aquela sensação de que tudo que vivi me fez ser quem eu sou. A carta da primeira namorada, que depois de um ano te escreve uma carta pedindo desculpas, ou as carteirinhas da quarta-série, ou ainda alguma carta dos meus pais, ou algum jornalzinho da escola que seu nome saiu e por isso o guardou.

Pois bem, no meio desta papelada, encontrei um "boletim", informativo do Anglo, lugar onde fiz o cursinho semi-intensivo por seis meses. Só tenho esta única edição, uma folha de sulfite frente-e-verso de 17 de outubro de 1994. Nesta edição especial, é publicado um texto póstumo do professor Betão, professor que até onde me lembro não me deu aulas, mas vai saber, por algum motivo, li o texto e algo me fez guardá-lo na mesma caixa que a charge que os alunos do meu pai fizeram para ele quando eu nasci.

No texto o professor Betão conta que sua lavadeira, a Ritinha certa vez encontrou um desses bilhetinhos com perguntas que os alunos mandam, e sem grandes cerimônias, pergunta a ele o que é a Emenda Platt. Ele conta que, ainda atordoado, sem entender muito bem de onde a cearense semi-analfabeta que trabalha com ele há tanto tempo tirou esta pergunta, ele segue falando da emenda na constituição cubana que legitimava a intervenção ianque na ilha pré-revolução.

E, em seu texto segue imaginando que iria seguir discorrendo sobre a revolução de Fidel, e o como o isto a transformaria, e como ela levaria estas idéias de volta a sua terra natal, e como isto no nordeste miserável, explorado, cronicamente inviável causaria levantes, e como esta revolução traria ao nordeste extinção do analfabetismo a exemplo da ilha-território-livre, e de como a mortalidade infantil se reduziria aos melhores níveis do mundo.. Segue em seus devaneios até que ritinha quebra novamente o silêncio, "Professor, quando é que vai consertar a máquina de lavar?"

E Ritinha, representante característica dos brasileiros como si só, assim como um professor que convive em paz consigo mesmo com uma lavadeira semi-analfabeta em casa, deixou para lá. Seguiu com seu cotidiano e passou a salada.

Fico pensando o que diabos, do alto dos meus 18 anos, estava passando na minha cabeça. Será que só fiquei comovido por ser um texto póstumo? Será que eu sabia o que é a Emenda Platt? A verdade é que o texto, 12 anos depois de ter sido guardado, às vesperas de minha viagem a Cuba, veio no momento exato.

Certo está Drexler, que canta ao fundo "La vida es mas compleja de lo que parece".

2 comments:

  1. ..e a fé que depositei
    tu vai guardar na caixa mágica..

    [continuidade para o desfecho musical]

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  2. Anonymous4:51 PM

    Revisitar a própria história é realmete algo fantástico!
    A impressão que se tem, ou que pelo menos eu tenho, é de que volto um pouco no tempo.
    Reler cartas, rever fotos, relembrar acontecimentos importantes e até momentos aparentemente banais que foram marcantes, no mais das vezes, me proporciona sentir os aromas e as sensações do passado, como se estivesse acontecendo naquele exato momento!

    ... e o melhor de tudo é quando chegamos à conclusão de que há coerência entre o antes e o agora!
    Relembrando uma conversa que tivemo há algum tempo, talvez por isso você tenha guardado o texto do seu professor ... por pura coerência!

    Continue aí a sua auto-arqueologia.

    bjo...

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