Wednesday, July 09, 2008

Filme 1/52: Tropa de Elite

Tecnicamente, Tropa de Elite é um bom filme (me recuso a distinguir entre os nacionais e os não, se é bom é, se não, não é, sem amenizantes ou pré-conceitos). O roteiro e atuação convencem, as locações e montagem são inteligentes e prendem a atenção de quem assiste. A fotografia e som, ainda que sem nada muito inovador, é bem executada e faz muito bem seu papel (o que para muitos filmes já seria uma vitória), câmera quase todo o tempo na mão e nervosa, como um bom filme de ação, som dublado, muita luz natural, perseguições e tiros, cenas de violência convincentes (com algumas exceções) jogo com profundidade de campo e uso dinâmica do olho. Tudo como manda a estética hollywood dos anos 00.

O filme começa deixando você tenso pois vamos todos subir o morro juntos com o BOPE para acabar com um tiroteio na porta de um baile funk. A tensão é interrompida com uma volta de 6 meses no tempo para saber como se chegou até este ponto. Muito esperto! Deixando de cara o espectador sem ar e envolvido em toda a ação! Mais tarde quando se chegar a esta mesma cena, ela terá um novo significado, já se entenderá os motivos e a empolgação com a cena será ainda maior. Coisas de roteiro bom, boa execução, montagem inteligente. Resumidamente, Tropa de Elite é, tecnicamente, um filme de ação para ninguém botar defeito.

E realmente, se o filme se passasse em algum subúrbio de Los Angeles, duvido que alguém se importasse tanto, ou até que participasse de qualquer festival.

Mas o fato é que o filme é no Rio de Janeiro. E pior, "segundo depoimentos, baseado em fatos reais". Se a "verdade" em um documentário já sempre é enviesada, imagine numa ficção "baseada em fatos reais". Ora, é claro que o que se vê ali é uma opinião. Uma visão clara de um diretor com um público-alvo claramente e espertamente escolhido: as classes média e média-alta.

O filme toma partido e traz intencionalmente a platéia para o lado do BOPE: o Capitão Nascimento é um sempre durão, mas agora vai ter um filho e por isso titubeia (humanização pela ligação com a família - e viva a moral burguesa!). A polícia é corrupta e falida, a favela dominada pelo tráfico. Só Nascimento, no melhor estilo Rambo ou seriado policial americano, pode resolver os problemas ao fazer justiça com as próprias mãos. Até o super-cliché do policial querendo se aposentar vale para trazer o público domesticado com enlatados ianques pro seu lado.

Ora, a polícia não tem culpa, mas também não resolve, a favela, generalização do traficante, dominada e submissa, é terra de ninguém. A comunidade ou relações humanas praticamente não existem; ficam assim restritas à visão da classe média: favelados = bandidos, com a personificação de um líder (baiano), que apesar de encarnação do mal, teme o FBI, digo o BOPE.

Então, se a miséria e as drogas isentam a favela, a corrupção no alto escalão e a falta de estrutura isentam a polícia e o BOPE é o único salvador da pátria, quem é o culpado? A classe média! O playboyzinho estudante universitário que fuma seu baseado! Esta tese pode parecer completamente ridícula, mas ecoa perfeitamente na matriz de preconceitos que é a classe média "formadora" de opinião (aliás, são os únicos que têm acesso às salas de cinema).

Capitão Nascimento (ironia com toda a morte que dissemina) é a encarnação do BOPE, instituição da polícia carioca que prende, espanca, tortura, mata, invade casas de civís, agride mulheres, homens e crianças sem distinção, e ainda assim é heróica. Todos os seus atos são desculpados, afinal ela esta ali para proteger a classe média da favela. O filme faz isto de forma muito clara, humaniza a relação de nascimento com seu filho e esposa (até o momento em que desiste desta humanidade pela "causa" do BOPE) enquanto a relação do traficante com a esposa e filho praticamente não aparece, ou aparece como algo frio.

E não há escolha a não ser o BOPE, não adianta você, classe média, querer humanizar a favela (guardadas as restrições da ação da ONG), quando forem ameaçados, eles te matarão sem dó com um tiro na cabeça ou queimados vivos.

Quando Nascimento vai atrás de baiano para vingar a morte do soldado da tropa de elite, ele invade a casa e tortura um popular, ameaça empalá-lo com um cabo de vassoura, mas este ato é desculpado junto à audiência "Eu sabia que isto estava errado, mas eles mataram um soldado do BOPE". Pronto, está tudo permitido e ninguém mais pensa se é certo ou errado. O tiro na cara de baiano é feito de um jeito que o público fica quase desejando que isto acontecesse.

Por isto Tropa de Elite é um filme perigosíssimo, pois é ao mesmo tempo extremamente convincente e bem executado e absolutamente irresponsável. Reduz o problema social da violência do RJ, idolatra um grupo da polícia com conduta violenta, ilegal, imoral e fascista e acaba por legitimar, numa linguagem que o público entende, uma estratégia absolutamente equivocada de se garantir a segurança.

Alguém poderá dizer que é exagero, "é só um filme!", mas temos que lembrar que a arte é uma forma de se transformar a relação que temos com o mundo, relação esta que em última estância se chama "realidade".

Prova deste perigo são as transformações (ou não) em nossa sociedade pós-filme: o termo "Tropa de Elite" virou sinônimo de trabalho em equipe, eficiência e liderança. Já há livros de negócios "como montar sua tropa de elite", o BOPE dá palestras para executivos, "pede pra sair" e outros viraram expressões correntes. Por outro lado, a polícia do RJ continua sendo a que mais mata no mundo (desde 2003). Hoje 20% dos homicídios no RJ são executados pela polícia.

Filmes com o Tropa de Elite são passos largos para seguirmos legitimando estes resquícios (ainda grandes) de ditadura, violência e fascismo em nossa polícia.

1 comment:

  1. Gu,
    vai ficar repetitivo, mas eu também adorei esse texto!!!
    Continue escrevendo, Gunther é cultura!!!! rsrsr

    Bjos ,
    Camis

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